O Ministério Público Federal (MPF) propôs uma ação apontando a inconstitucionalidade do Decreto 9.806/2019, que alterou a composição e o funcionamento do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). Entre as mudanças, a norma publicada em maio reduziu o número de vagas destinadas à sociedade civil, enquanto, proporcionalmente, ampliou a presença do governo federal no colegiado. As ONGs ambientalistas tiveram seus mandatos cindidos à metade, e passaram a ser escolhidas por meio de sorteio. A Arguição de Descumprimento por Preceito Fundamental (ADPF) 623 deriva de uma representação feita à Procuradoria-Geral da República (PGR) pelos procuradores regionais da 3ª Região, José Leonidas Bellem de Lima e Fátima Borghi, em conjunto com entidades ambientalistas. Ajuizada em setembro último no Supremo Tribunal Federal (STF), encontra-se sob a relatoria da ministra Rosa Weber. O MPF indica diversos pontos da nova regulamentação que ferem preceitos constitucionais, sobretudo no que diz respeito aos princípios da participação popular direta da sociedade, da igualdade e da vedação do retrocesso socioambiental. Além disso, a norma poderá deixar desprotegidos os direitos fundamentais ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, à saúde e à vida.
Instituído em 1981 para atuar na elaboração de políticas públicas de preservação ambiental e dos recursos naturais, o Conama é um órgão federal com função consultiva e deliberativa. Desde sua criação, o colegiado já editou quase cinco centenas de resoluções, normas que, em nível infralegal, regulamentam uma ampla gama de questões afetas ao meio ambiente. Até a publicação do decreto, o Conama era composto por pouco mais de 100 conselheiros, distribuídos em cinco segmentos de representação: governos municipais, governos estaduais, governo federal, entidades empresariais e entidades da sociedade civil, nesta última incluídos representantes de organizações de trabalhadores, das comunidades indígena e científica, entre outros. Com as mudanças, o número de conselheiros com direito a voto foi reduzido a 23.
O decreto, assinado conjuntamente pelo presidente da República e pelo ministro do Meio Ambiente, cortou de 11 para quatro o número de assentos reservados às organizações ambientalistas. Por outro lado, foi ampliada a presença do bloco governamental, que, agora com 17 assentos, passa a deter 74% dos votos no conselho. Além disso, foi excluída a representação de órgãos federais mais afetos à temática do meio ambiente e de outros direitos fundamentais conexos, de que são exemplos a Agência Nacional de Águas (ANA), o Instituto Chico Mendes da Biodiversidade (ICMBio) e o Ministério da Saúde não têm mais vaga no conselho. Ao mesmo tempo, deu-se assento cativo no Conama ao Ministério de Minas e Energia e ao Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (Mapa), pastas naturalmente estranhas aos propósitos de proteção e preservação ambientais. Apesar de sucessivas alterações ao longo de sua história, em nenhuma reforma anterior “o Conama sofreu retrocessos tão acentuados em termos de pluralidade e amplitude da participação popular e do controle social”, afirmam os procuradores regionais autores da representação à PGR.
Mandato e escolha por sorteio – A nova regulamentação também determina que a escolha das entidades ambientalistas para compor o Conama, antes feita democraticamente por meio de eleição, seja realizada por sorteio. O MPF argumenta que essa alteração atenta contra o direito de participação direta da sociedade na formulação das políticas públicas ambientais, retirando das ONGs seu poder de auto-organização e impedindo que elas escolham por critérios objetivos os representantes mais aptos para atuar no conselho. Com a mudança, os procuradores alertam que são grandes as chances de que entidades sem condições estruturais para representar o bloco sejam as selecionadas. Eles também observam que ao substituir o sufrágio pela pura aleatoriedade como técnica de seleção, o decreto não violou apenas o direito de autonomia de um segmento, mas acabou por condenar a população ao risco de ver totalmente neutralizada a sua capacidade de participação no Conama.
Outra alteração foi a duração do mandato das ONGs, que passou de dois para apenas um ano, sem direito a recondução. Os procuradores que assinaram a representação, com experiência de atuação naquele colegiado como representantes do Ministério Público Federal junto ao Conama desde 2012, afirmam que o prazo reduzido dificulta o desenvolvimento de um trabalho consistente no Conselho. “Um frenético giro na troca das cadeiras não propiciará em nada o aprimoramento dos trabalhos no Conama; ao contrário, impedirá um mais adequado aprofundamento no conhecimento da matéria”, sustentam. Para o MPF, a reforma do Conama ocorre em um contexto de eliminação na máxima extensão possível das instâncias de participação da sociedade civil na formação de ações do Poder Público e de um desmonte de todo o aparato organizacional do Estado brasileiro para proteção e preservação ambiental. O Conama representa uma interseção de ambas tendências.
Falta de paridade – Os procuradores regionais afirmam sempre ter havido um desequilíbrio de forças no Conama. De um lado, segundo eles, sempre se conferiu uma grande maioria de assentos a órgãos e entidades que ali estão para defender interesses próprios, que apesar de terem naturezas variadas (governamental, econômica e corporativa), tendem a se unir e a se antagonizar aos propósitos de proteção do meio ambiente e de outros bens relacionados. Do outro lado, portanto, restaria uma ínfima minoria de vagas às ONGs ambientalistas, representantes da sociedade civil tidos como os mais legitimados para a defesa exclusiva dos direitos fundamentais ali em jogo, o que as torna incapazes de fazer prevalecer sua posição, limitando até mesmo seu poder de influenciar nos procedimentos e no resultado das decisões colegiadas.
Nesse sentido, sustentam que, por estar o Conama “vinculado constitucional e legalmente ao cumprimento de sua finalidade de proteção ambiental”, deveria, portanto, ser conferida a maioria de assentos justamente a essas ONGs ambientalistas. A disparidade na composição do Conama reflete inclusive na qualidade protetiva das normas que edita. Exemplo disso é a Resolução 491, publicada pelo colegiado em novembro de 2018, e que estabeleceu novos padrões nacionais de qualidade do ar sem prazos de progressão e com valores iniciais muito mais permissivos que aqueles recomendados pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Essa norma também está sendo questionada no Supremo, por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6.148), proposta pela Procuradoria-Geral da República, e baseada em representação dos mesmos procuradores regionais, em conjunto com entidades ambientalistas. Naquela ocasião, já haviam apontado para o déficit democrático existente no Conama, com composição ainda anterior à da reforma.
Os autores da representação sustentam, por fim, que a não correção dessas disparidades (existentes também em colegiados participativos estaduais e locais) continuará dando ensejo a desastres ambientais e humanos como os de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais. Afirmam que a supressão da sociedade civil e a prevalência de interesses estranhos, e até mesmo avessos, à proteção ambiental tende a resultar na desconsideração de preceitos básicos do direito ambiental, como os princípios da prevenção e da precaução, que devem reger toda e qualquer decisão nessa área.