O historiador Leandro Karnal, em suas palestras, tem dito que devemos temer pessoas que almejam fazer o bem à humanidade, pois, na esteira desta pretensão, podem cometer as maiores atrocidades.
Foram os discursos embasados na união nacional, na melhoria da condição de vida, no combate a um inimigo comum, que pavimentaram revoluções como a comunista chinesa, de Mao Tsé-Tung, em 1949, que vitimou mais de 70 milhões de seres humanos; como a bolchevique, de Lênin e Stalin, a partir de 1917, que assassinaram mais de 60 milhões de russos; e como a do Terceiro Reich, de Hitler, a partir de 1933, que levou o planeta à Segunda Guerra mundial, matando mais de 20 milhões de pessoas.
Estes líderes, em seu tempo, pregavam a defesa de nobres ideais para construírem uma nova realidade, encobrindo seus crimes de repressão e dominação sob o manto de um bem maior idealizado por eles próprios, o que, como demonstrou a história, não guardava identificação com os anseios de grande parte do seu povo.
Ultimamente, nesta longa e escura noite imposta pela pandemia, a defesa à vida tem sido a gestalt de discursos sedutores que espreitam a humanidade, tentando justificar ações de restrição à liberdade e às garantias individuais, não obstante a total ausência de conclusões científicas no enfrentamento desta praga.
A este respeito, a Organização Mundial da Saúde já orientou o uso de máscaras apenas para os sintomáticos e, posteriormente, para todos; adotou protocolos e, depois, os renegou; recomendou que só se procurasse hospitais em casos graves e, agora, nos estágios iniciais da doença. Todas estas idas e vindas somente espelham os conflitos internos da pesquisa e prática da medicina diante do coronavírus.
Portanto, sem consenso científico, não há espaço para certezas, causando estranheza a atitude dos Ministérios Públicos Estadual, Federal e do Trabalho do Rio Grande do Norte que, ao arrepio da recomendação do Conselho Nacional do Ministério Público nº 02/2020, ajuizaram ação civil pública contra o Município de Natal para impedir que este flexibilizasse a abertura da economia, em que pese números e pareceres favoráveis dos técnicos dos comitês de gestão de crise locais.
Felizmente, em uma ação análoga, o Juiz Magnus Delgado, da 1a. Vara Federal do RN, do alto de sua experiência, indeferiu a liminar de mesmo ímpeto, ensinando aos autores da ACP que “vivemos em um regime democrático (assim espero!). E nesse regime, o Judiciário não pode, nem deve, se arvorar em gestor administrativo, e é exatamente isso o que a presente ação almeja”.
Ninguém nega que a situação sanitária é extremamente crítica, o que pode ser mensurado pelos mais de 70 mil óbitos no país. Todos perderam parentes e amigos para este flagelo que desafia a existência humana, restando claro o sentimento de frustração e impotência.
Porém, a história já provou que nenhum bem jurídico pode ser subtraído ou mitigado em detrimento de outros, sob pena de tais supressões serem promotoras de injustiça e provocadoras de outras mortes que se estendem além da física.
O Ministério Público é um órgão de relevo para a higidez do Estado Democrático de Direito, sobretudo por possuir o múnus de defesa da ordem jurídica, dos princípios republicanos e interesses sociais e individuais indisponíveis.
No entanto, como lembrou o magistrado Magnus Delgado na referida decisão, não é dever do MP decidir os caminhos pelos quais devem trilhar os gestores públicos, estes, sim, detentores de mandatos concedidos pelo povo.
Assim, deve-se conter o sentimento de Sebastianismo que contamina alguns dos respeitáveis membros do Ministério Público, uma vez que a extrapolação de sua competência poderá desequilibrar os sistemas de pesos e contrapesos previstos na Constituição Federal.
Sem este equilíbrio e serenidade, talvez, enveredaria-se em uma distopia digna de Aldous Huxley, autor de “Admirável mundo novo”, em um futuro paralelo onde os cidadãos brasileiros saudariam os dignos promotores de justiça com um “Ave, Minister”!