Recentemente, o presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Dr. Jayme de Oliveira, esteve por estas plagas potiguares para participar de evento promovido pelo Tribunal de Justiça do RN, oportunidade em que pode expressar, como representante da magistratura nacional, toda a aflição em face da nova Lei dos Crimes de Abuso de Autoridade, chegando a afirmar que havia uma escalada autoritária no país pela via democrática com o fim de legitimar supressão de direitos, sendo, esta lei, uma tentativa de intimidar o Judiciário.
A declaração do Presidente da AMB, por óbvio, está revestida dos interesses legítimos de defesa da classe, buscando garantir direitos à magistratura e minimizar os riscos, que já não são poucos, da nobre missão de decidir bem no momento em que as relações humanas estão cada vez mais polarizadas e conflituosas.
No entanto, há de se perquirir, para além da ideologia e das reações de setores da Administração Pública, se a Lei nº 13.869, de 05 de setembro de 2019, é mesmo este instrumento odioso tão propalado e capaz de abalar as estruturas do Estado Democrático de Direito.
Ao se debruçar sobre esta matéria, é preciso anotar, de início, que a Lei de Abuso de Autoridade não é uma novidade. A antecessora era a Lei nº 4.898/1965, que previa o direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa civil e penal de agentes públicos, tendo sido revogada porque repleta de subjetividade e conceitos abertos, o que dificultavam a sua aplicação.
A nova LAA possui dupla objetividade jurídica, uma vez que pretende resguardar dois bens jurídicos tutelados pela Constituição, quais sejam: a de garantir (a) direitos fundamentais do cidadão (objetivo imediato) e (b) credibilidade e eficiência da administração pública (objetivo mediato).
Do art. 9º ao 38, a LAA cuidou de tipificar os crimes cometidos por “agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído”, desde que possua finalidade específica de prejudicar outro, beneficiar a si mesmo ou terceiro, ou por mero capricho ou satisfação pessoal.
Verifica-se, dentre as tipificações, que é abuso de autoridade prender sem os requisitos legais; decretar condução coercitiva manifestamente incabível; não comunicar prisão em flagrante no prazo legal; constranger preso ou investigado a produzir prova contra si ou terceiros; manter presos de ambos os sexos na mesma cela; invadir ou adentrar imóveis alheios sem autorização judicial; requerer ou instaurar procedimento em desfavor de alguém sem qualquer indício; processar penal, civil ou administrativamente alguém sem justa causa ou contra quem sabe inocente; retardar intencionalmente o julgamento de processos; e violar as prerrogativas da advocacia.
Quais, dentre estes dispositivos acima, colocam em risco a segurança de autoridade, a independência do Ministério Público ou intimida a Magistratura? O de proibir o acesso do advogado ao seu cliente preso para que este possa se defender? O de manter procedimento criminal sem um indício sequer e por prazo indefinido? O de manter presa uma adolescente de 15 anos em uma mesma cela com 30 homens no Pará, como fez a Juíza Clarice Maria de Andrade nos idos de 2007?
Sinceramente, se há uma surpresa na Lei de Abuso de Autoridade, é pela demora de se clarificar condutas que, não raramente, são cometidas por autoridades em todos os rincões de nosso país. Se o leitor duvida, é só acompanhar algum colega advogado em qualquer diligência nas repartições públicas, nos presídios, delegacias, órgãos ministeriais ou secretarias judiciárias espraiados em qualquer Estado da Federação. Não tardará a constatar arbitrariedades de todos os tamanhos e cores que alfinetam a alma republicana de qualquer cidadão decente.
Para aqueles que acharam a lei dura, algumas observações: os crimes tipificados na LAA possuem pena de 6 meses a 4 anos de detenção, ou seja, é incabível o regime fechado, permitindo, ainda, a transação penal ou suspensão condicional do processo.
Além disso, mantém-se a prerrogativa de foro (juízes e promotores, por exemplo, somente podem ser processados e julgados pelo Tribunal de Justiça) e a lei expressamente excetua o crime de hermenêutica, ou seja, não há abuso de autoridade por interpretação da lei dada pelo agente público, bem como as excludentes de ilicitude, quais sejam a legítima defesa, estado de necessidade ou estrito cumprimento de dever ou exercício regular do direito.
Por fim, a LAA elenca, como efeitos da condenação por abuso de autoridade, a indenização do dano e a inabilitação ou perda para o exercício de cargo, mandato ou função pública. No entanto, estes efeitos somente serão aplicáveis se o agente público for reincidente, devendo, o juiz, declarar as razões em sentença.
Para se ter ideia, o Prof. Fábio Ribeiro, Defensor Público no Distrito Federal, deu o seguinte exemplo sobre a reincidência: em uma primeira representação por abuso de autoridade, um agente público poderá lançar mão da transação penal; de uma suspensão condicional, na segunda representação; é condenado em uma terceira representação, perdendo sua condição de primariedade, e somente poderá ser considerado reincidente se, na quarta representação, o magistrado, motivadamente, entender dessa forma, aplicando um ou mais efeitos previstos na lei.
Como se vê, a LAA não é uma ameaça ao agente público que observa a lei e que possua o espírito público em suas ações. Mas, em um momento de fraqueza, caso cometa abuso de autoridade, não deverá ter qualquer sanção imediata em virtude da quantidade de benefícios acima expostos, sendo, a perda do cargo, uma hipótese longínqua e somente possível mediante esforço hercúleo do agente público.
É bem verdade que a Lei de Abuso de Autoridade terá muitos obstáculos a superar. Haverá o escrutínio da constitucionalidade e a construção jurisprudencial dos seus institutos até que a lei amadureça ao ponto de atingir seu real objetivo, que é o de ser um instrumento de garantias individuais e aperfeiçoamento e eficiência do serviço público, tendo, como destinatário final, a sociedade brasileira.
Kennedy Diógenes
Advogado e Ouvidor-Geral da OAB/RN.