Numa decisão unânime, o Superior Tribunal Militar (STM) decidiu, nesta quinta-feira (22), que os ex-militares que respondem a processo na Justiça Militar da União (JMU) continuam submetidos aos Conselhos de Justiça na primeira instância. Os Conselhos de Justiça são formados por quatro oficiais das Forças Armadas que atuam como juízes militares ao lado de um juiz de carreira (civil concursado).
O entendimento do STM rejeitou a possibilidade de militares que se desligaram das Forças Armadas receberem o mesmo tratamento dado aos civis após a sanção da Lei 13.774/2018, ou seja, serem julgados apenas pelo juiz federal da Justiça Militar.
A Lei 13.774/2018, sancionada em dezembro do ano passado, determinou que os civis que cometam crime militar devem ser processados e julgados apenas pelo juiz federal da Justiça Militar e não mais pelos Conselhos de Justiça. No entanto, alguns magistrados da primeira instância da Justiça Militar Federal passaram a entender que a mesma regra deveria ser aplicada aos militares que, após cometerem crime militar, foram licenciados da Força e deveriam, por essa razão, receber o mesmo tratamento dos civis.
Em 16 de maio, o STM decidiu admitir a Petição nº 7000425-51.2019.7.00.0000, interposta pelo procurador-geral de Justiça Militar, Jaime de Cassio Miranda. A ação pedia a uniformização da jurisprudência em toda a Justiça Militar no sentido de que os ex-militares que cometerem crimes ainda na condição de militar continuem sendo processados pelos Conselhos de Justiça após se desligarem da Força.
Como solução jurídica, o procurador-geral de Justiça Militar pediu que esse entendimento se tornasse consenso em toda a Justiça Militar, o que seria possível por meio de um instituto chamado Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR). Embora o IRDR não esteja previsto no Código de Processo Penal Militar (CPPM) nem no Regimento Interno do STM, o Plenário decidiu, em maio passado, ser possível a aplicação do instituto na JMU com base no artigo 976, incisos I e II, do Código de Processo Civil (CPC).
Instituições debatem o tema
Durante o julgamento, o procurador-geral de Justiça Militar, Jaime de Cassio Miranda, autor da petição, fundamentou alguns pontos do estudo da matéria em discussão. Ele esclareceu que o objetivo da Lei 13.774/2018, que transferiu a competência do julgamento de civis para o juiz monocrático, foi evitar que o civil (puro) se submetesse a um Conselho composto majoritariamente por juízes militares, fato que só se justifica no caso do militar que está sujeito às regras de hierarquia e disciplina.
O procurador-geral lembrou que o embasamento para a tese é que “é o tempo que rege o ato”, ou seja, deve-se considerar a situação da pessoa – se é militar ou não – à época do crime. Se ao tempo do cometimento do delito o militar está em atividade militar, ele está sujeito ao escabinato (Conselho). O procurador lembrou que a não convocação do Conselho, nesse caso, fere o princípio do juiz natural e também põe em xeque a validade do escabinato em qualquer situação envolvendo o julgamento de militares.
O representante da Defensoria Pública da União (DPU), Afonso Prado, argumentou contra a petição da PGJM. Segundo ele, a Lei 13.774/2018 declara que, na condição de civil, ninguém pode ser julgado pelo Conselho de Justiça. A sua sugestão para a controvérsia era de que o militar que tenha cometido crime seja mantido na Força até que se conclua o julgamento e assim mantenha a sua condição de militar. Ele afirmou ainda que, pelo fato de o ex-militar não estar mais submetido à hierarquia e à disciplina, não faz sentido que ele se submeta ao Conselho.
Por outro lado, o representante da Advocacia-Geral da União (AGU), Diego Pederneiras Morais Rocha, afirmou que a a manutenção do ex-militar no julgamento dos Conselhos era essencial na preservação dos valores da hierarquia e disciplina dentro das Forças Armadas. Ele lembrou o processo de alteração da Lei e o que levou ao julgamento do IRDR. Ressaltou a importância do escabinato para o julgamento do crime na Justiça Militar.
Já o advogado Andrew Fernandes Farias falou em nome da OAB-DF como amicus curiae (amigo da corte) e agradeceu o convite feito à OAB para participar do debate. Ele disse que a JMU é exemplo para as demais justiças do país e lembrou que a decisão da Corte traria repercussões em vários outros casos.
O advogado disse que quando a OAB se debruçou sobre o caso, optou-se pela abordagem do cognitivismo na busca da razão e da verdade e não da vontade e potestade. Para ele, o mais importante é a racionalidade e coerência do sistema, pois “a lei não pode ser interpretada em tiras, mas deve ser vista em conjunto”.
Relatório e voto de mérito
Antes de proferir o voto de mérito sobre a matéria, o relator, ministro Péricles Aurélio Lima de Queiroz, lembrou que o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) é uma das principais inovações do Código de Processo Civil de 2015, referente à uniformização da jurisprudência nos Tribunais.
Destacou também que o IRDR objetiva concentrar em uma só causa o julgamento de determinada tese jurídica, a qual, julgado procedente o pedido, deverá ser adotada no âmbito de toda a competência territorial subordinada. Com isso, o instituto possibilita a concretização do princípio da segurança jurídica e a garantia da duração razoável dos processos, pela fixação do precedente aos órgãos inferiores.
O ministro discorreu também sobre a competência dos Conselhos de Justiça (ou Conselhos de Guerra) para o julgamento dos crimes militares ao longo da história mundial. O magistrado acentuou como valores peculiares às Forças Armadas a submissão de seus integrantes aos pilares da hierarquia e da disciplina.
O relator afirmou que, desde a entrada em vigor da Lei 13.774/2018, consagrou-se a competência do juiz federal da Justiça Militar julgar, de forma monocrática, os civis que cometam crimes militares. Porém, passaram a ser proferidas diversas decisões de juízes da primeira instância no sentido de avocarem a competência singular para o julgamento de feitos em que o acusado, embora supostamente tenha cometido o crime na qualidade de militar da ativa, foi posteriormente excluído das fileiras das Forças Armadas.
“Ao dispor que os civis não estão sujeitos à hierarquia e à disciplina, o PL apresentado deixou claro que, aos militares, é devida estrita obediência a tais postulados, os quais são violados por ocasião da prática do delito”, afirmou o ministro. E continuou: “Não é correto afirmar que um princípio, lesionado no momento do cometimento do crime, deixa de ser sacrificado após a alteração da situação jurídica do réu. (…) Por tal motivo é que afirmamos que a condição de militar da ativa, para efeitos de definição do órgão competente da Justiça Castrense de 1º grau, deve ser aferida no momento da prática do delito.”
O magistrado destacou também que “mesmo que não mais ostente a qualidade de militar, os licenciados, desincorporados ou desligados permanecem com deveres que os classificam numa posição sui generis: não podem ser considerados integrantes das Forças Armadas na forma do art. 3º da Lei 6.880/1980, mas também não são civis na genuína acepção do termo, diante da capacidade de mobilização”.
Também foi rejeitada a tese levantada pela OAB-DF segunda a qual deveria ser aplicar à matéria o mesmo tratamento dado à hipótese do militar que comete um crime na condição de oficial de patente inferior e no decorrer do processo é promovido a general. Nesse caso, o militar passa a ser julgado pelo STM. O relator afirmou que não é possível a analogia: se o oficial-general permanecesse sob julgamento do Conselho, ele seria julgado por um coronel, o que fere os princípios da hierarquia e da disciplina.
Continuando o seu voto, o magistrado lembrou que a mudança do órgão julgador vai contra o princípio do juiz natural extraído dos incisos XXXVII e LIII do art. 5º da Constituição Federal, que dispõe que “não haverá juízo ou tribunal de exceção” e que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”.
“Portanto, quando a Constituição dispõe a inexistência de juízo de exceção, significa afirmar que o órgão competente para o julgamento deve ser definido antes da prática do fato típico”, explicou. Ele citou a hipótese de o réu ser licenciado e reintegrado mais de uma vez no curso do processo: a alteração do juízo competente a cada modificação da sua situação jurídica iria ferir “não só o postulado destacado, como o princípio da duração razoável e da economia processual”.
Ao final de seu voto, o ministro relator rejeitou a hipótese de equiparar a condição do ex-militar à condição de civil, conforme a alteração incluída no artigo 30 da Lei 8.457/92, no seu inciso I-B. “Significa dizer que se o acusado ostentava a condição de civil no momento da prática do fato típico, com a entrada em vigor da Lei 13.774/2018, a competência para julgamento automaticamente é designada ao Juiz Federal da Justiça Militar de forma monocrática. Todavia, caso seja militar à data do crime e, a posteriori, é excluído das fileiras castrenses, prevalece sua situação jurídica referente ao tempo da ação/omissão punível”, concluiu.
Com base no voto do relator, o Plenário do STM decidiu pela procedência do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) e estabeleceu a seguinte tese jurídica, que deverá ser imediatamente aplicada aos feitos em curso no 1º e no 2º grau da Justiça Militar da União: “Compete aos Conselhos Especial e Permanente de Justiça o julgamento de civis que praticaram crimes militares na condição de militares das Forças Armadas”.
E ainda: “A tese aplicada deverá ser imediatamente aplicada aos feitos em curso nos primeiro e segundo grau da Justiça Militar da União. Nos processos em trâmite no STM, caberá aos ministros relatores, liminarmente, e de forma monocrática, a) caso a pretensão contrarie o entendimento firmado pela corte, julgar pelo desprovimento e b) caso a solução for contraria à decisão do IRDR, dá provimento, depois de facultada as contrarrazões”.