O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), na sessão virtual finalizada na última sexta-feira (19), decidiu, por maioria de votos, que o crime de desacato foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988. A maioria dos ministros acompanhou o voto do relator, ministro Luís Roberto Barroso, pela improcedência da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 496, ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para questionar o artigo 331 do Código Penal (Decreto-Lei 2.848/1940).
A entidade argumentava que o dispositivo, que tipifica o delito de desacato a funcionário público no exercício da função ou em razão dela, não especifica a conduta e traz uma normatização extremamente vaga. Como decorrência dessa imprecisão, o tipo penal estaria sendo usado para reprimir a liberdade de expressão de cidadãos, que ficariam intimidados a não se manifestar diante de condutas praticadas por agentes públicos. Ainda de acordo com a OAB, a norma seria incompatível com o artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que tutela a liberdade de expressão.
Tratados internacionais
Ao afastar a alegada não observância a tratados internacionais, o relator afirmou que nem o texto expresso da Convenção nem a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) vedam que os Estados-membros se valham de normas penais para a proteção da honra e do funcionamento adequado da administração pública, desde que de modo proporcional e justificado. Segundo Barroso, nos precedentes internacionais citados pela OAB, a violação ao artigo 13 da Convenção não decorreu da mera tipificação em abstrato de crimes contra a honra ou de desacato, mas da utilização indevida do direito penal como instrumento de perseguição e de inibição da liberdade de expressão. Essa situação, no entanto, não se equipara ao pedido formulado na ação.
Administração pública
Em relação aos fundamentos da tipificação penal do desacato, o ministro observou que, ao atuar no exercício de sua função, o agente público representa a administração pública, o que lhe sujeita a um regime jurídico diferenciado de deveres e prerrogativas. Em razão dessa responsabilidade, ao praticar determinadas condutas idênticas às perpetradas por particulares, os funcionários públicos são punidos de modo mais rigoroso. Em contrapartida, têm prerrogativas próprias para que possam atender adequadamente ao interesse público.
É nesse contexto que, segundo Barroso, se justifica a criminalização do desacato. “Não se trata de conferir um tratamento privilegiado ao funcionário público”, assinalou. “Trata-se, isso sim, de proteger a função pública exercida pelo funcionário, por meio da garantia, reforçada pela ameaça de pena, de que ele não será menosprezado ou humilhado enquanto se desincumbe dos deveres inerentes ao seu cargo ou função públicos”.
O ministro lembrou que desacato está previsto no capítulo dos crimes praticados por particular contra a administração pública. Ou seja, o bem jurídico diretamente tutelado não é a honra do funcionário público, mas a própria administração pública.
Liberdade de expressão
Para que efetivamente tenha potencial de interferir no exercício da função pública, Barroso ressaltou que o crime de desacato deve ser praticado na presença do funcionário público e não abrange, dessa forma, eventuais ofensas perpetradas por meio da imprensa ou de redes sociais, resguardando-se, dessa forma, a liberdade de expressão. Ainda de acordo com o relator, não basta que o funcionário se veja ofendido em sua honra, ou seja, não há crime se a ofensa não tiver relação com o exercício da função.
Barroso destacou que o Supremo possui jurisprudência ampla e consolidada de defesa da liberdade de expressão, mas ressalvou que, como qualquer direito fundamental, ela encontra limites quando é utilizada como pretexto para violações graves a outros interesses e direitos fundamentais. O ministro enfatizou, no entanto, que o artigo deve ser interpretado restritivamente, a fim de evitar a aplicação de punições injustas e desarrazoadas. “Os agentes públicos em geral estão mais expostos ao escrutínio e à crítica dos cidadãos, devendo demonstrar maior tolerância à reprovação e à insatisfação, sobretudo em situações em que se verifica uma tensão entre o agente público e o particular”, concluiu.
Ficaram vencidos os ministros Edson Fachin e Rosa Weber.