O Supremo Tribunal Federal (STF), na sessão realizada nesta quinta-feira (13), deferiu parcialmente medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6529 para estabelecer que os órgãos componentes do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) somente podem fornecer dados e conhecimentos específicos à Agência Brasileira de Inteligência (Abin) quando for comprovado o interesse público da medida, afastando qualquer possibilidade desses dados atenderem a interesses pessoais ou privados. Segundo a decisão majoritária, que deu interpretação conforme a Constituição ao parágrafo único do artigo 4º da Lei 9.883/1999, toda e qualquer decisão que solicitar os dados deverá ser devidamente motivada, para eventual controle de legalidade pelo Poder Judiciário.
Os ministros também decidiram que, mesmo se houver interesse público, os dados referentes às comunicações telefônicas ou sujeitos à análise da Justiça não podem ser compartilhados com base no artigo 4º da Lei 9.883/1999, que instituiu o Sisbin e criou a Abin, em razão de limitação aos direitos fundamentais. O STF declarou, ainda, que, nas hipóteses cabíveis de fornecimento de informações e dados à Abin, é imprescindível a instauração de procedimento formal e a existência de sistemas eletrônicos de segurança e registro de acesso, inclusive para efeito de responsabilização, em caso de eventuais omissões, desvios ou abusos.
Sisbin
A Abin é o órgão central do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin), formado também pela Casa Civil, pela Advocacia-Geral da União (AGU), pelos Ministérios das Relações Exteriores e da Defesa, pelas Polícias Federal (PF) e Rodoviária Federal (PRF) e pelas Agências Nacionais de Transportes Terrestres (ANTT) e de Transportes Aquaviários (Antaq), entre outros órgãos.
Desvirtuamento da Abin
A ADI foi ajuizada pela Rede Sustentabilidade e pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). O dispositivo questionado (parágrafo único do artigo 4º da Lei 9.883/1999) condiciona a ato do presidente da República o fornecimento à Abin de dados e conhecimentos específicos relacionados com a defesa das instituições e dos interesses nacionais. Segundo os partidos, a solicitação de informações no âmbito do Sisbin pela Agência se tornou ainda mais sensível com edição do Decreto 10.445/2020, que altera a estrutura da Abin e entrará em vigor no próximo dia 17. Eles sustentam que, com a mudança, bastará uma requisição para que o diretor-geral da agência tenha conhecimento de informações sigilosas e que, apesar de a lei já ter mais de 20 anos, a forma como vem sendo interpretada compromete direitos fundamentais.
Na sessão de hoje, o advogado da Rede, Bruno Gonçalves, afirmou que o Sisbin “é complexo e conta com leque amplo de informações” e que a possibilidade de a Agência acessar informações sigilosas é incompatível com a proteção dos sigilos de comunicações, de investigações, da vida privada e de outros direitos constitucionais. Segundo o advogado, a “sutil modificação” feita pelo decreto apresenta potencial transgressão aos direitos fundamentais e não beneficia a sociedade, mas é parte de um conjunto de “ímpetos autoritários” voltados para a criação de uma linha paralela de investigação “contra cidadãos contrários ao governo”.
Representando o PSB, Rafael de Alencar Araripe Carneiro defendeu que é preciso estabelecer limites à interpretação da lei que trata do Sisbin, sob pena de abuso de direito e desvio de finalidade, tendo em vista reiteradas tentativas de vigilância e controle de dados da população brasileira. Conforme o advogado, a solicitação de informações deveria ser motivada e excluir a quebra dos sigilos bancário, fiscal e telefônico.
Controle e fiscalização
O advogado-geral da União, José Levi Mello do Amaral Júnior, ao defender a constitucionalidade do dispositivo da Lei 9.883/1999, destacou que a norma está vigente há mais de 20 anos sem questionamentos e que a Abin está sujeita aos controles interno, judicial e parlamentar, por meio da Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI) do Congresso Nacional. Segundo Levi, a Abin não acessa informações privadas como dados bancários, fiscais e telefônicos.
Ato legítimo x “arapongagem”
A relatora da ADI, ministra Cármen Lúcia, salientou em seu voto que o fornecimento de informações entre órgãos públicos para a defesa das instituições e dos interesses nacionais é legítimo. “O que é proibido é que se torne subterfúgio para atendimento ou benefício de interesses particulares ou pessoais, especialmente daqueles que têm acesso aos dados, desvirtuando-se competências constitucionalmente definidas e que não podem ser objeto de escolha pessoal”, afirmou.
Segundo ela, o serviço de inteligência é necessário ao país, mas o agente público que solicita e obtém informações fora dos estritos limites da legalidade comete crime. “’Arapongagem’ não é direito, é crime, e, praticado pelo Estado, é ilícito gravíssimo”, assinalou, lembrando que o compartilhamento que vise a interesses privados caracteriza desvio de finalidade e abuso de direito.
Limites ao compartilhamento
Para a ministra Cármen Lúcia, o parágrafo único do artigo 4º da Lei 9.883/99 é compatível com a Constituição Federal, mas a decisão de compartilhamento deve ser devidamente motivada para fins de eventual controle jurisdicional de legalidade. Além do interesse público e da motivação, a ministra considerou que o ordenamento jurídico prevê hipóteses em que é necessária a cláusula de reserva de jurisdição, ou seja, a necessidade de análise e autorização prévia do Poder Judiciário. “Isso se dá nos casos de ingresso na casa de alguém ou de interceptações em dispositivos telefônicos”, exemplificou. “Nessas hipóteses, é essencial a intervenção prévia do Estado-juiz, sem o que qualquer ação de autoridade estatal será ilegítima, ressalva feita à situação de flagrante delito”.
Segurança de dados
O presidente do STF, ministro Dias Toffoli, propôs a inclusão de um item ao voto da relatora sobre a necessidade de um procedimento referente à segurança no fornecimento de dados. Ele considera importante haver um sistema de inteligência para a defesa do Estado, mas apontou a necessidade de um protocolo para que possa haver responsabilização por eventuais omissões e abusos. Essa sugestão foi incorporada ao voto da relatora.
Divergência
O ministro Marco Aurélio ficou vencido, ao votar pelo indeferimento da liminar. Segundo ele, após 21 anos da edição da lei, não há risco de se aguardar, até o julgamento definitivo, a manifestação das autoridades próprias, como o Congresso Nacional.
EC/CR/CF