O Ministério Público Federal (MPF) enviou ao Supremo Tribunal Federal (STF) manifestação em mais um recurso que questiona a decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) de rejeitar a denúncia de homicídio triplamente qualificado e falsidade ideológica contra ex-agentes da ditadura militar responsáveis pela morte do metalúrgico Manoel Fiel Filho, em 1976. A Justiça Federal em primeira instância e o TRF3 consideraram que os crimes estariam abarcados pela Lei de Anistia (Lei 6.683/1979). Para o MPF, no entanto, ao impedir a punição de agentes responsáveis por graves violações de direitos humanos, a decisão vai contra a garantia da dignidade humana, prevista no art. 1º, inciso III, da Constituição, além das normas que determinam obrigatoriedade de observância das decisões proferidas pelas cortes internacionais às quais o Brasil esteja vinculado por força de tratados ou convenções.
Preso quando distribuía jornais do Partido Comunista Brasileiro, Manoel Fiel Filho foi torturado e morto nas dependências do Destacamento de Operações de Informações (Doi-Codi) do II Exército, em São Paulo. O laudo da morte indicava suicídio, a exemplo do que ocorreu com o jornalista Vladmir Herzog. Em 2015, o MPF denunciou Audir Santos Maciel, Tamotu Nakao, Edevarde José, Alfredo Umeda, Antonio José Nocete, Ernesto Eleutério e José Antonio de Mello por homicídio triplamente qualificado (motivo torpe, emprego de tortura e impossibilidade de defesa da vítima) e falsidade ideológica. No entanto, a denúncia foi rejeitada pela Justiça em primeira instância e, após recurso, pelo TRF3, sob o argumento de que os crimes estariam anistiados. A decisão cita que a Lei de Anistia foi considerada válida pelo STF na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153.
O MPF apresentou então o Recurso Extraordinário 1.335.327-SP ao próprio Supremo, na tentativa de reverter o entendimento, sem sucesso. Em agravo, o órgão defendeu que inexiste uma orientação pacificada do Supremo no tema, principalmente tendo em vista a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund, que determinou ao Brasil a investigação e punição dos crimes cometidos durante a ditadura militar, em contexto de grave e sistemática violação aos direitos humanos. Segundo o MPF, o Supremo não analisou a validade de Lei de Anistia sob a ótica do direito internacional, que deve ser feito na ADPF 320, ainda pendente de julgamento.
Agora, em parecer, a subprocuradora-geral da República Cláudia Marques reitera esses argumentos. Ela lembra que o sistema implantado com a Constituição de 1988 é incompatível com a tolerância institucional aos atos atentatórios aos direitos humanos. “A Constituição, em postura sem precedente na história constitucional brasileira, alçou a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado brasileiro, sendo incompatível com esse sistema a decisão tomada pelo acórdão recorrido de impedir o trâmite da ação penal e a punição dos graves crimes objeto da imputação”, afirma.
Ela afirma também que o acórdão impugnado contraria o que decidiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund, “quando se concluiu que a Lei de Anistia, ao impedir as investigações, negar acesso a arquivos e não prever sanções a violações de direitos humanos, seria incompatível com as obrigações internacionais assumidas pelo Brasil perante a Convenção Americana de Direitos Humanos (aprovada pelo Brasil pelo Decreto Legislativo 27, de 25 de setembro de 1992)”. Ela lembra que, segundo a Constituição, as decisões das cortes internacionais aos quais o Brasil está vinculado por força de convenções ou tratados internacionais são de observância obrigatória pela Justiça nacional.
A subprocuradora-geral afirma que o tema central da ADPF 320, sob a relatoria do ministro Luiz Fux, é justamente a análise da Lei de Anistia na ótica do direito internacional e das regras que o Brasil deve seguir. Por isso, não seria possível aceitar a “solução simplista de tão somente invocar o que foi decidido na ADPF 153/DF para efeito de negar a correta punição dos fatos que ocorreram naquele obscuro período de ditadura militar”. Para ela, o STF deve reverter a decisão do TRF3, determinando que a denúncia contra os agentes seja aceita e a ação penal possa prosseguir.