O jogo de “futebol mirim” na querida quadrinha, perto de casa, era a principal ocupação da meninice. Cimentado e sem grandes acabamentos, o piso carraspento do campo foi causa de muitas topadas, raladas e quedas que nos roubavam pele e sangue. Nestes momentos, a orientação dos experts de plantão era colocar pó de café para estancar o sangue, o que fazíamos com a maior boa-fé do mundo.
Obviamente, com o passar do tempo, descobrimos que esta orientação era tão inócua quanto tantas outras que compunham o “manual prático do que não pode ser feito”, ao lado de leite com manga, tomar banho depois de comer, estalar os dedos e deixar a sandália virada para baixo.
Como se vê, há mitos por toda parte; alguns, inofensivos, mas outros que podem trazer sérias consequências para determinado grupo ou para toda a humanidade, como foi o caso daquele forjado por Andrew Wakefield: médico inglês que defendeu a existência de uma suposta relação entre a vacina tríplice viral e autismo em crianças, tendo publicado seu trabalho, nos idos de 1998, no conceituado jornal científico The Lancet.
A repercussão dessa “tese” foi tamanha que a imunização, em vários países, teve diminuição significativa, ressurgindo surtos de doenças praticamente extintas, como rubéola e sarampo, perdurando, até os dias de hoje, o mito de que vacinar as crianças pode deixá-las autistas, tendo sido citado, inclusive, pelo ex-presidente norte-americano, Donald Trump, não obstante tal mito ter sido comprovadamente desmentido.
É que, logo depois da publicação do trabalho de Wakefield, a comunidade científica constatou que era uma fraude grosseira, pois ele havia manipulado deliberadamente os dados da pesquisa em busca de notoriedade, custando-lhe a cassação de sua licença médica e o repúdio público, além das graves sequelas na humanidade.
Por outro lado, grandes descobertas da medicina nasceram da tentativa e erro, da pesquisa e experimentação dos tratamentos em um mundo cético e negacionista.
Em 1921, Frederick Banting e Charles Best, nos laboratórios da Universidade de Toronto (na época, referência mundial de pesquisa da diabetes), iniciavam os experimentos de isolamento da secreção interna pancreática.
Apenas um ano depois do início das pesquisas de Banting e Best, havia, no hospital universitário, uma ala da enfermaria infantil lotada de crianças em coma hiperglicêmico, com cetoacidose diabética, tendo sido palco de um dos momentos mais emocionantes da medicina hodierna.
Conta-se que o ambiente da imensa enfermaria pesava de desolação e silêncio. Os leitos enfileirados com crianças de todas as idades eram repositórios das últimas orações de seus pais, que, impotentes, as encomendavam a Deus ante a morte próxima e inevitável.
Os cientistas, juntamente com o químico James Collip, que conseguiu purificar o extrato de insulina (depois da primeira aplicação no adolescente Leonard Thompson), adentraram o pesaroso recinto e passaram a injetar a novíssima substância naqueles pacientes imóveis, de tenra idade, diante dos olhos chorosos de seus pais.
Quando inoculavam o extrato purificado da insulina no último pequenino, o primeiro, que jazia no início da enfermaria, irrompeu em choro, chamando pelos pais, acordando do sono profundo, sendo seguido, um a um, pelos demais pacientes que retornavam à vida, enchendo seus pais de felicidade e esperança, o que marcou o início do tratamento eficaz para a diabetes.
Os dois casos acima demonstram que avocar ciência para validar seus estudos não é o bastante, seja para desacreditar teses ou atribuir verdade a elas sem que sejam totalmente refutadas.
É que o método científico requer observação, formulação de problemas e hipóteses, experimentação, análise e conclusão dos resultados, o que denota um processo lógico-dedutivo aplicado à ciência que somente se extingue diante da comprovação ou refutação das teses apresentadas.
Assim, entre mitos e verdades, o divisor de águas sempre será a ciência, entendendo-se esta como farol humano capaz de resplandecer o caminho seguro para o bem-estar e a felicidade dos povos da Terra.