Às vezes, algumas histórias chegam prontas até mim, só esperando o título para serem publicadas e compartilhadas com outras pessoas para que, contando-as, possam encontrar identidade e, em certa medida, dividir um pouco dos fardos que todos carregamos.
Esta é uma carta de um filho para seu pai, a qual, dirigindo-se a ele, relata um fato importante na vida familiar. Vejamos o que escreveu:
“Pai, o senhor se casou com uma mulher dedicada, que o apoiou e o motivou diariamente, e teve lindos filhos, esforçando-se para bem alimentar e educá-los, porém, testemunhei que passou a vida eternamente preocupado, distante e indiferente.
A verdade é que, sob pretexto de dar uma melhor vida à família, envolveu-se demais com seus próprios negócios, sempre conectado e no comando de tudo, despendendo uma energia enorme para manter e aumentar seu patrimônio, trabalhando, de sol a sol, sem descanso para ter cada vez mais.
Estas preocupações e milhões de outras, principalmente aquelas que alimentaram a vaidade, como sair no jornal de domingo, trocar de carro todo ano ou viajar várias vezes ao exterior, deturparam a sua visão de mundo e o distanciaram de sua família, principalmente de sua esposa e dos seus filhos. Foi nesse momento, como deve se lembrar, que resolvi sair de casa e sumir da sua vista.
Mas, como a vida é sábia, aconteceu um milagre: em um acesso de raiva por perder um negócio, o senhor passou mal e foi ao médico, que passou para outro, que passou mais exames, até chegarem ao diagnóstico seco e frio, tão pragmático quanto a sua atuação profissional: o senhor tem câncer; carcicoma renal em metástase. O tempo de vida restante foi estimado em apenas 3 meses. Eu soube que escutou isso do médico e riu, talvez pensando que, por ironia, os resultados das empresas sempre se dão assim, a cada trimestre, só que, no seu caso, seria o balanço geral e final, o encerramento de um exercício sem previsão de continuidade no próximo ano.
Na manhã seguinte, minha mãe me contou que o senhor acordou e ficou observando, por muito tempo, o azul do céu com admiração e espanto. Resolveu sair para o jardim de sua bela e bem cuidada mansão, em um condomínio de luxo, e viu, pela primeira vez desde que se mudou para lá, há cerca de sete anos, borboletas, lembrando, como num sonho distante, que as perseguia na sua casa da infância.
Voltou para dentro da casa e foi até o quarto dos meus dois irmãos, encontrando-os dormindo. Nunca os tinha observado assim, espalhados e entregues à beleza do sono inocente. Foi a cozinha e esbarrou com sua esposa, que o recebeu com carinho enquanto preparava o seu café, como toda manhã, mas foi somente nesta que percebeu que havia ali um sorriso e um brilho no olhar que o envergonharam ante a sua própria indiferença. Sim, pai; mamãe sempre o amou e o admirou, fazendo-o se sentir acolhido e protegido, com um lar para voltar no fim do dia.
Deu mais uma volta explorando a sua própria casa, apreciando a decoração, a disposição de móveis que sequer havia usufruído, e entrou lentamente na sua biblioteca. Quantos livros! Reconheceu que a maioria jamais abriu. Colocou um CD de Andrea Bocelli e pegou um livro sobre Platão, abrindo-o aleatoriamente na alegoria da caverna. Leu e chorou tão profundamente que, às vezes, faltava-lhe o ar, até mamãe o abraçar comovida e o acolher em seu regaço.
Pela primeira vez, percebeu que toda a sua vida foi vivida como apenas sombras projetadas na caverna que arquitetou. Aprisionou-se às imagens tão volúveis quanto os desejos básicos do ser humano. Soube por mamãe que o senhor havia lhe dito que nunca viveu até aquela manhã. Foi, estranhamente, a perspectiva da morte que lhe devolveu a vida e a liberdade.
Os médicos, infelizmente, foram precisos em sua estimativa. Três meses depois desta manhã, o senhor cerrou os olhos materiais pela última e definitiva vez neste planeta. Eu não o acompanhei em seus últimos dias, apesar de ter me convidado e tentado falar comigo algumas vezes, mas já estávamos distantes demais para nos reconhecermos como pai e filho.
No entanto, eu soube que foram os três meses mais felizes da sua vida; que, feliz verdadeiramente, compartilhou com todos, principalmente com a mamãe, a sua alegria de viver e de ver um mundo novo, como se voltasse a ser criança, transformando a pesada carga da morte iminente em leveza e irreverência entre os que presenciaram esta revolução.
Por isso, pelo esforço em superar suas próprias dores e tentar amenizar o medo e as incertezas dos que ficaram, eu o perdoo. Na verdade, gostaria de lhe dizer muitas coisas, mas, no fim, quem merecia ouvir tudo o que passei por sua causa havia morrido no dia do seu renascimento, três meses atrás.
Sei que, apesar de tudo, o senhor foi em paz. Saiba que aprendi com o senhor como não morrer em vida, esperando e confiando que, um dia, possamos ter uma nova chance de nos entender. Muito obrigado, Pai”.
Eu agradeço ao filho por compartilhar sua história emocionante. Quem também quiser compartilhar suas histórias, pode enviar para o meu e-mail (kennedy.diogenes@gmail.com), que terá seu anonimato garantido. Para mim, cada história contada é um pedaço de nossa vida que se liberta e encontra guarida no coração dos outros.