Há quase uma década, o Brasil comemorava a sanção da Lei Complementar nº 135, de 04 de junho de 2010, denominada de Lei da Ficha Limpa, a qual acrescentou à LC 64/90 a hipótese de inelegibilidade para todos aqueles que forem condenados, seja em decisão transitada em julgado ou por Órgão Colegiado, por crimes contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público; contra o meio ambiente e a saúde pública; e por crimes eleitorais, para os quais a lei comine pena privativa de liberdade, dentre outros.
Tal feito, que foi recepcionado com euforia naquele momento histórico, deveu-se ao fato de que a Lei da Ficha Limpa, além de ser um divisor de águas para a aplicação da moralidade na administração pública, advinha de um projeto de lei de iniciativa popular que mobilizou mais de 1,5 milhão de assinaturas e 2,5 milhões de apoios virtuais, representando, portanto, expressiva e legitimada alteração nos valores sociais do povo brasileiro.
Ocorre que os projetos de lei por iniciativa popular são raríssimos na Democracia Brasileira, pois a Constituição Federal, em seu art. 61, exigiu que fossem subscritos por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles, criando um obstáculo prático quase insuperável, qual seja o de checagem das assinaturas que aderiram à propositura do respectivo projeto de lei.
Para se ter ideia, desde 1988, apenas quatro projetos de lei de iniciativa popular chegaram à Câmara Federal e tiveram que ser ratificados por parlamentares, uma vez que não havia mecanismos práticos de conferência das assinaturas dos eleitores. Foi somente assim que surgiram, além da Ficha Limpa, a da ampliação dos crimes hediondos; a do combate da captação de sufrágio e do uso eleitoral da máquina administrativa; e a que instituiu o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social.
Se é difícil a coleta e conferência dos projetos de lei de iniciativa popular no âmbito nacional, que possui muito mais estrutura e recursos, no âmbito estadual, a viabilidade de se originar um processo legislativo, a partir da iniciativa popular, torna-se em um evento praticamente mitológico, quimérico, digno dos contos que dão vida à fantasia.
Entretanto, de tempos em tempos, a fantasia parece ganhar vida. No Estado do Rio Grande do Norte a Lei de Iniciativa Popular (Lei 10140/2016) foi alterada pela Lei nº 10.513/2019, de autoria do deputado Kelps Lima (SDD), permitindo, pela primeira vez no Brasil, que a coleta e validação das assinaturas sejam realizadas por meio digital, sendo a mais avançada no país.
Dessa forma, a adesão aos projetos de lei de iniciativa popular passa a ser extremamente fácil, uma vez que se simplifica com o download do aplicativo “Mudamos”, disponível em iOS e Android, que tem a função de coletar e validar as assinaturas digitais dos eleitores, sendo um dos mais importantes exemplos da tecnologia a serviço da democracia.
Justamente por isso, a Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional do Rio Grande do Norte, encampou a luta do primeiro projeto de lei por iniciativa popular virtual do Brasil, que trata da vedação para assumir cargos comissionados do Estado do RN de todos aqueles enquadrados na Lei da Ficha Limpa, uma vez que, para a OAB, aquele que não possui idoneidade para ser eleito também não a possuirá para ser servidor público.
Enfim, as possibilidades que são ofertadas pela tecnologia, propiciando a participação popular nas coisas do Estado, parecem não ter fim, instaurando um novo momento em que fantasia e realidade trabalhem juntas em prol de um país melhor.
Kennedy Diógenes
Advogado