Não é fácil falar de monstros, mas, às vezes, é preciso fazê-lo para exterminá-los.
Havia um monstro debaixo da cama… espreitando, com seus olhos estreitos e maliciosos, a intimidade de muitos lares em busca de presas fáceis.
Esconde-se, por vergonha da sua própria torpeza, da luminosidade do dia e da verdade, perambulando, andrajoso e capenga por seus aleijões morais, nas sombras da confiança que lhe foi depositada.
Assim como “O dinossauro”, de Augusto Monterroso, quando acordamos, o monstro estava lá, saltando da fantasia à realidade, vivendo entre nós… como se fosse um de nós.
Foi a Cuca que veio nos pegar e se alimentar da inocência indefesa dos que ainda crescem, dos que mal aprenderam a falar, que passaram a ser aterrorizados pelo boi da cara preta e pelo bicho-papão, estes seres da imaginação que se materializaram em nossas casas e ruas.
Para saciar sua fome lasciva e inesgotável, um Drácula apareceu por detrás da capa e transformou o castelo de segurança em seu reino de devassidão, governado pelo desejo desenfreado que, com suas garras longas e pegajosas, a tudo contaminara, a tudo maculara, marcando suas vítimas com o avejão da tristeza.
E não são poucos os “escolhidos” da barbárie. No Brasil, o lobo mau violenta três crianças ou adolescentes por hora, segundo dados do Ministério da Saúde. De cada 10 pessoas conhecidas, 4 foram vítimas de abuso sexual, sendo que destas, metade possuía menos de 5 anos e 70% são meninas.
Foi assim que a brincadeira acabou, o carrinho de bombeiro vermelho acinzentou, a boneca Emília perdeu a cabeça, o playmobil se queimou… Os brinquedos falavam o que a timidez crescente calava. Não era instinto ruim, mas defesa.
Um dia, a ferida profunda cicatrizou por cima… só por cima. Outros fantasmas apareceram: o retraimento; a baixa autoestima; a dificuldade de relacionamento; as fobias e obsessões de toda ordem; culpas e depressões; dentre outros, passaram a nos atormentar por dentro, sinalizando que, ainda, havia dor a ser curada.
Depois de um tempo, passamos a entender que isso não é uma coisa que o tempo cura. Os monstros continuam embaixo da cama até que nós os agarremos pela goela e o arrastemos para fora de nossa alma.
E como se faz isso? Bom, se estamos passando, neste exato momento, por abusos, devemos falar, denunciar. Conversemos com quem pudermos sem qualquer vergonha, pois ninguém tem culpa de ser vítima de violentadores e abusadores.
Você, que lê agora, percebeu, no seu convívio, medo ou mudanças no comportamento de alguma criança ou adolescente, procure ouvir atentamente. Investigue, aja, proteja. A gratidão será inesquecível.
Se já passamos por isso, libertamo-nos do fardo ao compartilhar com alguém, ao fazer terapia, ao buscar ajuda profissional. Aos poucos, veremos que a insegurança e o medo são um eco do passado que precisa cessar. Hoje, crescemos e sabemos nos defender de dragões e medusas.
O importante, e isso deve ser dito, é que ninguém está sozinho nisso. Neste mundo, há monstros de várias formas, mas, também, há fadas, príncipes e princesas que nos oferecerão, no fim da história, aquele letreiro que sobe com um grande “felizes para sempre”.