Há, em todas as plagas, pessoas que, neste momento, sentem dores em suas mais variadas formas: dores físicas, espirituais, morais e mentais, angústias indescritíveis que alveja o coração e carcome a esperança, solidões de toda sorte que apequenam e sufocam o ser, dentre outras mazelas humanas que fazem parte dos pesares que arrastamos como fardos abrolhosos ao longo da vida. Estas são aquelas dores que tentam nos fazer desistir de tudo, pois tudo o que queremos é que elas parem.
No entanto, permitam-me uma curta reflexão sobre algumas dessas dores, o que faço sem qualquer pretensão de debater, ensinar ou subestimar os dilemas, os conflitos enfrentados por qualquer um que sofre. Sei bem o quanto a dor e a angústia são insuportáveis e capazes de nos conduzir aos precipícios morais que parecem intransponíveis, como se não houvesse mais qualquer saída.
Primeiro, a dor não é seletiva e não escolheu um só para Cristo. A história está repleta de pessoas incríveis que superaram as suas próprias dores e seguiram em frente. De conquistadores a religiosos, de pesquisadores a atletas, de pessoas simples a intelectuais, ninguém passou pela vida incólume da dor. Em maior ou menor proporção, todos nós fomos alcançados por estes tentáculos aguilhoados que atravancaram os nossos objetivos. Aqui, compartilho um pouco de minha própria experiência, que não é nada de especial, mas que me legitima a falar sobre este assunto.
Tive uma infância feliz com irmãos e pais amorosos até os 6 anos, quase 7, quando passei a sentir uma dor intensa no lado esquerdo do quadril, o que me causou crises de choro convulsivo por várias semanas. Apesar de ter sofrido com asma anteriormente e inúmeras crises de garanta, essa dor era diferente, persistente, que se tornava aguda quando eu pisava com minha perna esquerda.
Meus pais, preocupados, começaram a me levar para vários especialistas, até que Dr. Francisco Gomes, ortopedista em Natal, descobriu o que havia me acometido: uma doença rara chamada Legg-Calvé-Perthes, ou doença de Perthes, que é uma patologia degenerativa da articulação do quadril, destruindo a cabeça do fémur por falta de vascularização. Daí, as dores intensas: quando pisava, a cabeça do fémur fragmentava.
Na época, havia dois tratamentos: o mais curto, que envolvia uma cirurgia experimental, que traria a medula óssea de outra parte da perna esquerda até a cabeça do fémur para tentar revascularizar, ou o mais longo, que era imobilizar completamente os membros inferiores pelo máximo tempo possível, até que o próprio organismo pudesse se revascularizar.
Por segurança, escolhemos o caminho mais difícil, para minha tristeza. Foram os 3 anos mais longos da minha vida, meticulosamente divididos em 3 partes: nos primeiros 6 meses, numa imobilização de gesso completa das duas pernas, que era extremamente incômoda, pois eu só podia ficar de peito para cima ou para baixo, o que me impediu de sair de casa; depois, por 1 ano e meio, com uma calça de gesso que me permitiu usar uma cadeira de rodas e voltar às aulas, e; no último ano, com suspensório de perna e muletas, que me deixaram mais livre, apesar de ter sido o pior momento para meus pais, uma vez que tiveram que dobrar a vigilância para que eu não abandonasse as órteses.
Durante todo esse tempo, a dor, em mim, não diminuía, pois eu chorava até dormindo, e a de meus pais só aumentava, presenciando e compartilhando o meu sofrimento. Com o tempo, associaram-se a esta outras diferentes. Imaginem uma criança, em uma cadeira de rodas, no pátio da escola ou na sala de aulas, em uma época que não se falava em bullying? Pois é. Conheci, muito cedo, a crueldade humana e o desprezo pelos diferentes, o que me transformou em uma pessoa muito mais resiliente.
A doença passou e ficou uma importante lição sobre as dores: elas são uma constante em nossas vidas. A dor é a primeira sensação que sentimos ao nascer: estamos seguros e aconchegantes na vida intrauterina quando somos “puxados” para o mundo exterior; doem os olhos com a claridade, cortam o nosso cordão umbilical, os toques e manejos dos médicos e enfermeiros são incômodos e a tradicional palmadinha nos faz chorar, anunciando o início de uma nova jornada no palco terrestre.
Crescemos e as dores físicas, como as cólicas, as doenças, as variações hormonais, não são as únicas a nos afligir. Juntam-se a elas as dores morais de toda ordem, inclusive as sentimentais, na mesma medida em que vamos aprendendo o significado de humilhação, traição, deslealdade, falta de reciprocidade, dentre tantas outras, o que aumentam exponencialmente seu poder de impacto.
Crescer dói; viver dói. Por isso, aprender, o quanto antes, que a dor é nossa companheira do cotidiano, torna-se fundamental para a definição de como vamos passar a encará-la dentro da nossa vida, uma vez que tendemos a nos adaptar mais rapidamente às situações que não podem ser mudadas.
Pensem um pouco: o exercício físico tonifica nosso corpo, a boa alimentação nos fornece saúde, os pensamentos positivos acentuam nosso ânimo. Do mesmo jeito, as dores, por mais profundas que sejam, são oportunidades para que possamos aguçar nossa inteligência e fortalecer nosso caráter. São, de fato, aquele tapinha que recebemos assim que viemos ao mundo para nos encorajar a viver.
Não caiam na armadilha do merecer, ou não, tal ou qual dor. Ela chega em nossas vidas sem qualquer convite e se instala até que a admitamos como um móvel antigo da sala. Não estou dizendo para não buscar alívio ou cura, mas que a assumamos. Quando não mais a percebemos, ela some e vem outra. Sabe aquela pergunta que fazemos ao outro quando o encontramos? “Oi, tudo bem?”. Pois é. Esta pergunta quer dizer que, de tanto sentirmos, habituamo-nos a nos perguntar quanto estamos bem em meio às dores.
Conheço pessoas que passam a existência programando coisas para depois de suas dores, de seus lutos, como se fossem natural à vida a ausência de problemas, de dificuldades, de sofrimentos de qualquer espécie. A ausência de dor é uma exceção na natureza e a vida não dá pausas. Ao mesmo tempo, vi histórias de resignação e superação da dor que são inspiradoras. Chico Xavier, acometido de doença degenerativa nos olhos, psicografou cerca de 530 livros; Marie Curie, prêmio Nobel de Química e Física, que descobriu e pesquisou o rádio e a radioterapia e, mesmo tendo desenvolvido uma leucemia causada pelo elemento, continuou a fazê-lo; ou Stephen Hawking, portador de esclerose lateral amiotrófica, que não o impediu de desenvolver teorias como a da singularidade, são apenas uma fração de tantos outros que aprenderam a conviver com suas dores e, apesar delas, deixaram um legado para a humanidade.
Sendo assim, aprendi que nos cabe escolher um, entre dois caminhos: considerar que as dores são um incômodo que nos inabilitam ou que são forças motrizes que nos impulsionam. A verdade é que ninguém morre de dor. As pessoas morrem por muitas razões, porém nenhuma delas está diretamente relacionada com a dor, e, sim, com a forma como lidamos com ela. O que vocês escolhem?