“Uma camisa-de-força tamanho mirim / Vai ter que me explicar tintim por tintim / Por que a lei só se aplica a mim?” é um trecho da música “Deixa eu falar”, de 1997, da banda Raimundos, que possui, como pano de fundo, a liberdade de expressão como alicerce da nação.
Sem entrar no mérito do gosto musical, o tema escolhido pela banda, há mais de duas décadas, não poderia ser mais atual, tendo, em seu refrão “deixa eu falar”, o contraponto a uma série de decisões judiciais que assombram pela inovação jurídica e alcance desmedido dos seus efeitos, cassando a voz de jornalistas e perfis de pessoas identificadas com determinada corrente ideológica.
A liberdade de expressão é, de fato, um dos pilares do Estado Democrático de Direito e um dos valores mais luminosos da humanidade. O direito de se dizer o que pensa é o princípio fundamental de construção da sociedade livre e plural, sendo expressado como tal no artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH – 1948).
No Brasil, o livre pensamento possui berço esplêndido, sendo garantia fundamental desde a Constituição do Império, em 1824, apesar dos períodos mais ou menos curtos de censura instituídos pelos regimes autoritários, como o Estado Novo e a Ditadura Militar de 1964, vindo a resplandecer, nos dias atuais, com a Constituição Cidadã de 1988, que a alçou à condição de cláusula pétrea.
É bem verdade que a liberdade de expressão não é uma autorização de livre agressão a quem quer que seja, tendo, a Constituição Federal, estabelecido os limites de seu exercício, quais sejam as vedações ao anonimato e ao cometimento de crimes.
Assim, quando se diz o que quer, deve-se assumir a autoria e não violar às leis, como ofender a honra do outro, incitar a violência, a desordem ou cometer discriminação racial, religiosa, social, dentre outros ilícitos, podendo ser responsabilizado aquele que cruzar os limites na medida dos seus atos.
Estranhamente, ao contrário dos tempos da ditadura, as censuras do momento partem do Poder que deveria zelar e aplicar a lei: o Poder Judiciário. Ora, decisões judiciais que calam críticas administrativas de um jornalista potiguar a um Procurador da República, que tiram do ar perfis das redes sociais de determinadas pessoas, são o quê mais, senão censura?
Se há cometimento de crime, que os trechos de reportagens, comentários ou postagens identificados como tal sejam retirados de circulação, mas censurar completamente as matérias ou retirar do ar perfis inteiros, incluindo mensagens legais, é uma extrapolação, sem tamanho, do direito de julgar, uma repristinação do ato ominoso que se vertia sobre a sociedade oprimida pela ditadura.
Ou seja, mesmo os “discursos de ódio” ou “incitação” devem ser combatidos pontualmente e de forma restritiva, não servindo de esteira para legitimar a mordaça de eventuais dissidências ou críticas a Governos ou seus Poderes, em uma evidente desvirtuação da garantia da lei e da ordem.
E que não vibrem os opositores pois, ainda ontem, muitos deles embalavam, com medo da repressão, denúncias de superfaturamento e propinas de obras públicas em letras como a do “Bêbado e a equilibrista”, de Elis Regina, que cantava “Caía a tarde feito um viaduto / E um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos / A lua, tal qual a dona de um bordel / Pedia a cada estrela fria um brilho de aluguel”.
Foi justamente para evitar a volta dos períodos das sombras que a Constituição Brasileira se revestiu de direitos e garantias para proteger o cidadão ante o Estado titânico, dentre eles o do livre pensamento e expressão que, nas palavras do timoneiro da reabertura democrática, Ulysses Guimarães, “é apanágio da condição humana e socorre as demais liberdades ameaçadas, feridas ou banidas. É a rainha das liberdades”.
Deixa eu falar, Sr. Juiz. O excesso da liberdade de expressão deve ser combatido com mais liberdade, lançando-se mais luz e, não, mitigando o seu facho. Como concluíram os Raimundos, “viver não vale nada se eu não me expressar”. Basta de trevas no Brasil.