No fim da década de 1940, meu pai, conhecido como “Seu Chiquinho”, ingressou no Colégio Diocesano Santa Luzia, em Mossoró, para prosseguir seus estudos, uma vez que Pau dos Ferros não oferecia, naquela época, tais condições.
O Colégio Diocesano Santa Luzia, fundado em 02 de março de 1901, sempre foi mantido pela Igreja Católica, o que o elevou à referência em educação de qualidade, passando por lá várias lideranças do Rio Grande do Norte, como os Ex-Governadores Dix-sept Rosado, Cortez Pereira, Tarcisio Maia e Lavoisier Maia, Ex-Prefeito de Mossoró e Ex-Senador Dix-huit Rosado, o Deputado Federal Vingt Rosado, dentre outros.
Seu Chiquinho, como outros conterrâneos seus, passou pelo internato do Diocesano em uma época de extrema rigidez educacional, mormente sob a batuta do Padre Sales, mas que lhe propiciou uma riqueza de experiências naquela meninice, apesar da distância e saudade dos seus familiares.
Acontece que, para amenizar a saudade e quebrar a monotonia clériga, a elaboração de um conjunto de peraltices, tantas quantas possam conceber as mentes férteis e criativas das crianças, era o principal lazer dos alunos do Diocesano, deixando alguns “causos” que merecem ser contados.
Certo dia, no final de uma aula do Padre Gabriel, a turma começou um rebuliço danado, enquanto o irritadiço professor tentava controlar a situação. Seu Chiquinho, que sentava em uma das últimas fileiras, tirou uma folha de caderno, amassando-a e empapando-a com saliva, criando uma bolota que foi arremessada em direção à primeira fileira de cadeiras, onde sentava um de seus colegas e conterrâneos, o Lineu, cuja rivalidade entre ambos era bem acirrada.
O artefato viajou de um lado ao outro da sala, encontrando o destino certo na orelha de Lineu que, passando a mão na baba escorrida pelo pescoço, foi choramingar junto ao Professor. Este, por sua vez, já no limite do estresse para controlar uma turma de adolescentes, considerou este fato a gota d´água e vociferou:
“Quem fez isso é um FP…”. – gritou o Padre Gabriel, dando só as iniciais do xingamento que pretendia colocar para fora. Como a turma foi pega de surpresa, reinou um silêncio sepulcral.
“Vocês sabem o que é FP?” – emendou o Padre Gabriel, enfurecido e já suspeitando quem teria sido o autor da proeza.
Seu Chiquinho levanta a mão e diz, com um sorrisinho cínico na face:
“FP, Padre, não é Francisco Pereira, aquele aluno que desistiu no ano passado?”.
O Padre Gabriel, descontrolado, projetou-se do púlpito escolar em direção ao fundo da sala, sacudindo a palmatória em punho, ao mesmo tempo em que Seu Chiquinho, bem mais rápido do que ele, levantou-se e correu para a saída da sala, sendo perseguido pelo seu mestre.
Ao passar pela porta, e sentindo o zumbido do açoite próximo do seu lombo, Seu Chiquinho passou pela porta e a puxou para fechar, fazendo com que o Padre batesse com sua cabeça na quina desta, caindo ele próprio, seus óculos para um lado e a palmatória para o outro, o que deixou, no meio da testa e por algumas semanas, um calombo significativo.
Com isso, magoado e envergonhado, o sacerdote-professor se intrigou de Seu Chiquinho. Como era muito introsado com os meninos, chegando a participar dos seus jogos e brincadeiras, resolveu punir a turma toda com sua ausência, o que gerou muita insatisfação em todos.
Alguns dias depois do fato, Padre Gabriel, ainda resoluto na punição, estava sentado em um banco do pátio, lendo um breviário, quando Seu Chiquinho teve uma idéia para a pacificação geral. Foi no dormitório e pegou um par de sapatos de couro usados que havia recebido de sua irmã, Cristina, calçando-os e se dirigiu ao lugar de recreio. A uma distância segura do professor, jogou areia sobre alguns metros do cimento e fez carreira, deslizando, com seus sapatos, sobre o piso do pátio.
De lá do banco, o sacerdote se remexeu um pouco, mas continuou firme, mantendo os olhos no livro.
Seu Chiquinho fez outra vez, deslizando uma distância maior do que a primeira. Quando se preparava para correr a terceira vez, o sisudo Padre Gabriel havia desaparecido para dar lugar ao velho e sorridente mestre de outrora, que aplaudia as manobras do seu aluno impertinente, pedindo que fizesse mais uma vez.
Graças aos sapatos mágicos, Seu Chiquinho fez às pazes com Padre Gabriel, ensinando-nos que, muitas vezes, erramos uns com os outros, magoamo-nos, mas não podemos deixar de criar oportunidades e compartilharmos a alegria de viver em paz.