Quando eu nasci, já estava lá. Um baú de couro preto, que havia sido de minha avó paterna, Alzira, e, provavelmente, serviu-a durante décadas ao guardar seu enxoval, desde seu casamento aos 16 anos, nos idos de 1914.
Em 1974, Alzira fechou seus olhos materiais pela última vez em nosso plano e voltou a morar na verdadeira pátria, que é a espiritual, deixando, nas mãos da sua segunda filha, Maria Alzir, o seu baú. Por sua vez, Tia Zizi, talvez por considerar uma peça importante para sua mãezinha, mandou reformar, recobrindo-o por dentro e por fora, e o presenteou ao meu pai, Seu Chiquinho, que cuidou dele por quase 4 décadas.
Foi somente em 2011, quando chegou o momento de meu pai se encontrar com os que o precederam na espiritualidade, é que minha mãe, Francisca, resolveu nomear a mim e a minha esposa, Raquel, os guardiães deste móvel, ocupando, desde então, um lugar especial em nossa casa.
Geralmente, uma antiguidade, sendo considerada como tal o objeto com mais de 100 anos, possui três parâmetros básicos de valoração: quem fez, quem usou e o quanto é raro. Um quadro único, por exemplo, de um pintor mundialmente famoso, com mais de um século, possui um valor monetário consideravelmente superior ao de um outro, de mesmo estilo, pintado por um artista ainda vivo e há apenas uma década, independentemente da qualidade ou do talento de ambos.
No entanto, estes bens de família mais ordinários possuem pouco valor material, uma vez que são peças comuns e desgastadas, não se destinando, na atualidade, a qualquer outra utilidade senão o da decoração clássica em uma residência ou comércio.
O valor intrínseco destes bens está na sua própria história e no seu uso cotidiano pelos antepassados, transformando-os em relicários singulares das memórias e energias que a eles se amalgamaram, deixando, qualquer um destes objetos, com um valor sentimental inestimável.
É assim com o baú de Alzira… Não é valioso para o mercado, mas, ao imaginarmos que uma jovenzinha, no início do século passado, depositou ali seus medos e sonhos, ao sair da sua casa paterna, em Marcelino Vieira, para assumir o papel de esposa e senhora de um dos fazendeiros prósperos de Pau dos Ferros, e com ela singrou os tempos, enriqueceu-o ao status de um dos tesouros do coração.
Dessa forma, a guarda dos bens familiares antigos se equivale a uma corrida de revezamento, onde uma geração transfere à outra seus valores materiais e emocionais como se fosse o bastão da prova de atletismo, sendo um dos meios com os quais mantemos a conexão com os nossos antepassados.
Além disso, deter e zelar os bens de nossos ascendentes são uma lembrança vívida de que somos o que vivemos e, não, o que temos, lembrando um dos últimos pedidos de Alexandre, o Grande, que, antes de morrer, expressou seu desejo de que cobrissem o chão, por onde o cortejo passaria, com os seus tesouros, e que suas mãos estivessem à vista e vazias, para que todos pudessem ver que os bens materiais aqui conquistados, aqui permanecem.
No fim, o baú de Alzira deverá seguir sua jornada para além da nossa própria existência humana, servindo à família de lembrança viva de onde viemos e que, quando partirmos, nada levaremos, sendo, todos nós, meros guardiães dos bens que, hoje, pensamos possuir.