É uma quadra histórica sombria, esta que atravessamos. Como se não bastasse a pandemia, que desafia toda a experiência humana, há alguns fatos do cotidiano que vergastam a razão e afrontam nossos valores mais caros, sem qualquer cerimônia, impingindo-nos a repensar, a medir, a contrapor, a rever ou a reafirmar nossas próprias crenças.
O fato dessa criança que foi abusada sexualmente, dos 6 aos 10 anos, pelo próprio tio, é um desses casos que nos arrastam para um torvelinho de emoções, que nos fazem testar crenças e conceitos que acreditávamos já sedimentados em nossa sociedade.
Se, por um lado, há a comoção nacional ante a violência brutal perpetrada contra essa menina, por outro, a radicalização de determinados grupos extremistas, verdadeiras feras que, no afã de impor suas ideias a qualquer custo, tensionam ainda mais as relações, agravam o drama e dão um toque iníquo nessa história que ficará no imaginário popular por muito tempo.
De fato, a maioria de nós, brasileiros, é contra o aborto e repudia a ideia de pena de morte, o que é fruto de uma construção sociológica que nos torna um povo único no mundo, uma vez que nossa espiritualidade e criatividade forjaram uma nação resiliente e tolerante, que costuma defender a vida, abraçar as vítimas e acolher os excluídos e apátridas.
É, por esta nossa índole, que temos tanta paciência com nossos gestores, que compartilhamos o lar com aqueles que perderam ou foram expulsos dos seus, ou porque sempre escolhemos como vencedores os que mais sofreram nos jogos da vida.
No entanto, nada é absoluto no universo. Até as leis da física mudam em determinadas circunstâncias. Como pregava Heráclito, a única coisa permanente no mundo é a constante mudança.
Por isso, ser contrário ao aborto, em abstrato e no conforto do nosso sofá, é natural, fácil e nobre, mas o mesmo não ocorre quando enfrentamos um caso concreto.
E aqui convidamos aqueles que, como nós, defendem a vida, para que exercitemos juntos um pouco a imaginação nos parágrafos a seguir.
Imaginem uma crianca de 6 anos, com olhos brilhantes, sorriso largo e iluminado, com graça, leveza e inquietude próprias de uma infância feliz.
Agora, imaginem um lobo ominoso que se lançou sobre esta criança para lhe rasgar a inocência, embotar seus olhos e calar sua voz pelo medo, roubando-lhe a alegria de viver por 4 longos anos, em que o império do medo e da subjugação extrema a fizeram acreditar que nada mais seria, senão um objeto de satisfação de alguém mais forte e poderoso do que ela.
E se essa criança fosse nossa irmã, filha, sobrinha ou neta? O que faríamos? Será que não seríamos tentados a fazer justiça com as próprias mãos ou a amenizar, o mais rápido possível, toda e qualquer experiência tenebrosa dessa criança?
Não há respostas para estas perguntas, exceto as que são dadas pelos que viveram, infelizmente, esse horror.
Sendo assim, para além das arengas entre partidários e contrários ao aborto, as decisões da criança e da família, pela primeira vez, devem ser respeitadas, pois impor determinada crença à força é ampliar a violência que esta menina já sofreu nesta curta existência.
Só nos resta pedir a Deus para que esta pequenina seja amparada de todas as formas, curando suas feridas e lhe dando uma nova oportunidade, longe de lobos e feras, para ser feliz.