Esta semana, juntei-me aos mais de 90 milhões de pessoas que tomaram, ao menos, a primeira dose da vacina contra a covid-19 no Brasil, alargando as defesas imunológicas contra esta terrível ameaça.
No momento da vacinação, pensamentos e emoções conflitantes tomaram conta de mim. Sentia alegria por estar vivo. Agradeci a Deus pela chance de poder iniciar o meu processo de imunização contra este mal, e ao prodígio da ciência, que não faltou à humanidade, produzindo uma vacina em menos de 1 ano, enquanto a média, até então, seria de 10 anos.
Ato contínuo, a sombra da tristeza pairou sobre meus olhos ao lembrar dos mais de 500 mil brasileiros que não conseguiram ver, através dos olhos da carne, o raiar do sol deste dia glorioso, e que deixaram seus filhos, pais e irmãos com o profundo vácuo da saudade enraizada em seus corações.
Além das vidas interrompidas, inúmeras dificuldades sociais, econômicas e políticas tiveram esteio na maior crise sanitária da humanidade, todas descortinadas, de uma só vez, nos lares da Terra, dos mais humildes aos mais abastados, produzindo chagas do desespero e da impotência que matam o espírito antes do corpo.
Em uma pequena agulhada, alegria e tristeza, esperança e desolação, gratidão e lamento, dentre outros, pesaram em meu peito e disputaram meu ânimo, até que, pensamento a mil, lembrei-me do conflito bíblico entre judeus e filisteu e da celebre declaração de fé de Samuel: “Até aqui, o Senhor nos sustentou”.
Outra lembrança entrou na sequência. “A última nota”, filme estrelado por Patrick Stewart e Katie Holmes, onde ele encarna um pianista famoso e ela, uma jornalista que o inspira a voltar a se apresentar depois da morte de sua esposa.
Em determinada cena, ele contava sobre sua infância no longínquo internato na Suiça, mandado pelos pais que não gostavam de crianças, impingindo-o aos mais longos anos de solidão e carência da sua vida. Na adolescência, passou apenas um verão inteiro com sua família, que foi maravilhoso, fazendo-o concluir de como “é interessante como uma só boa lembrança pode apagar todas as ruins”.
Como no filme, nesta etapa da evolução pandêmica, quando as brumas da incerteza sobre o futuro começam a se dissipar, os bons sentimentos superam os maus, apesar de não esquecermos as irreparáveis perdas provocadas pela incapacidade, pela demora, pelo negacionismo ou por qualquer outra razão que “inspirou” os governos durante esta crise.
Por outro lado, o distanciamento social reduziu a circulação de pessoas e, consequentemente, a emissão de gases poluentes, fazendo com que o meio ambiente se restabelecesse e a camada de ozônio se recuperasse. A tecnologia avançou extraordinariamente, assim como a área da saúde, com novos equipamentos e tratamentos produzidos em tempo recorde.
Com o caos trazido pelo coronavírus, que alterou significativamente nosso modus vivendi, coube-nos a missão de administrar as mudanças nesta próxima quadra histórica, munindo-nos de razões e motivações, sejam ideais éticos, filosóficos ou religiosos, sustento de nossa família ou oportunidade de crescimento profissional, mas que nos guiarão para a reconstrução de um mundo melhor.
A agente de saúde, que havia acabado de aplicar a vacina, cortou meus pensamentos ao pedir para segurar o algodão. Olhei para ela e pedi a Deus que abençoasse a todos estes profissionais da linha de frente, que tiveram a coragem heróica de lutar nesta guerra desigual contra o desconhecido para defender a vida de todos.
Liguei o carro e parti montado na confiança, na fé em Deus e na ciência, na gratidão aos homens e mulheres que, de alguma forma, venceram seus medos e seguiram em frente quando todas as luzes estavam apagadas, servindo de fio condutor para a humanidade.
Como disse Santo Agostinho, “enquanto houver vontade de lutar haverá esperança de vencer”, e nós, certamente, venceremos, apesar do alto custo humano, pois, ainda segundo o santo de Hipona, a “angústia de ter perdido não supera a alegria de ter um dia possuído”.